Cantinho da leitura
O destaque de hoje é para:
Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade:
Itabira 31 de outubro de 1902- Rio de Janeiro - 17 de agosto de 1987.
Foi um grande poeta, contista e cronista brasileiro.
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No Aeroporto
Carlos Drummond de Andrade
Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o
seu quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos,
embora não falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto,
e não deixamos de explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de
palavras, e, a bem dizer, não se digne de pronunciar nenhuma. Quando muito,
emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos quais se faz
entender admiravelmente. É o seu sistema.
Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os
moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta,
porque ostensiva. A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo
considerado sorriso especial, revelador de suas boas intenções para com o mundo
ocidental e oriental, e em particular o nosso trecho de rua. Fornecedores,
vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso (encantador, apesar da
falta de dentes), abonam a classificação.
Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários
especiais, comidas especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados
especiais. Mas sua simples presença e seu sorriso compensariam providências e
privilégios maiores.
Recebia tudo com naturalidade, sabendo-se merecedor das distinções, e
ninguém se lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas horas de sono - e
lhe apraz dormir não só à noite como principalmente de dia - eram respeitadas
como ritos sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz para não acordá-lo.
Acordaria sorrindo, como de costume, e não se zangaria com a gente, porém nós
mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus sonhos.
Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para violino e
orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura da
tevê. Andando na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas
sendo por amor de Pedro não tinha importância.
Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheios (e
não os usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de
escritório, botões simples ou de punho. Não é colecionador; gosta das coisas
para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer)
pô-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém duvido
que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas
pupilas azuis — porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta
qualquer suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos.
Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os
cômodos, e o que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele
porque destruiu a lâmpada do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que
ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso de irritação, e me sentiria
desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas coisas eram
indiferentes à nossa amizade — e, até, que a nossa amizade lhe conferia caráter
necessário de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.
Viajou meu amigo Pedro. Fico refletindo na falta que faz um amigo de um ano
de idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou
vazio.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço. Reprod. Em: Poesia completa
e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973. p.1107-1108
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